Questionar a desigualdade social como elemento contribuinte da violência urbana está em pauta na mídia. Também faz parte da discussão à função das nossas polícias, a formação dos “homens das fardas”, a violência dos grandes centros urbanos, o papel das instituições constituídas e nesse processo em qual direção segue a nossa sociedade. Sobre estes temas, a psicóloga e professora da UNEB em Juazeiro, Maria Rita do Amaral Assy*, conhecida no meio acadêmico e pelos amigos como Maita, fala um pouco dessas questões em entrevista exclusiva para o blog.
Longe de querer resolver todos os fatores atenuantes que se entrelaçam nessa complexa problemática social, Maita relata um pouco a construção ou o sentido de como produzimos, nós, sociedade, as diversas violências.
Teresa Leonel - A sociedade está insegura em relação às polícias militar e civil? A polícia, em geral, não tem credibilidade?
Maria Rita (Maita) - Pensando a sociedade como sendo as pessoas em geral: a relação das pessoas em geral com as polícias é muito ambígua, paradoxal. Não há um único sentido para o que sentem, pensam, esperam da polícia. É um bom campo de trabalho, bem remunerado para os padrões gerais, sério, de respeito etc. (cada vez mais os jovens mesmo graduados concorrem a vagas nas polícias). É também sentida como uma ameaça nas abordagens. É a encarnação da lei. É a corrupção em pessoa. Enfim, para pensarmos essa relação temos que saber de que momento, sob que condições iremos analisar.
Pensando a sociedade como o modo de vida e organização social vigentes: vivemos numa sociedade que tende a solucionar seus problemas e conflitos com a ferramenta ‘polícia’. Tanto delegamos as soluções às instituições policiais, como incorporamos um modo-polícia de lidar com tudo. A política não é admirada toda vez que serve a um controle e repressão? Político bom é tanto aquele que a pretexto de uma transparência, vigia, controla, pune etc. como aquele que exerce a lei, ou até mesmo de onde emana o que deve regular a sociedade? Os furos na imprensa não são para denunciar crimes? O sensacionalismo que muitas vezes é característico da imprensa não estaria mostrando a vida como um drama policial? O bom pai não é aquele que detém o poder de polícia sobre seus filhos? O professor não segura a lista de freqüência, tira ponto, vigia, controla...?
Mas não é fácil e ao delegarmos nossos destinos às polícias, nos enfraquecemos. Perdemos armas, somos suspeitos, estamos sob a polícia. Ao sermos nós a polícia, nos distanciamos, desconfiamos, vivemos um jogo interminável de gato e rato na política, na escola, na imprensa, na família... Daí metemos o pau na polícia e tudo que vem dela, como que para reaver a nossa dignidade. Veja que essas condições estão postas antes mesmo que a polícia, qualquer que seja ela, exerça sua função. De modo que detestamos e admiramos a polícia não importa o que faça. E a depender do que faz, tendemos mais a um lado do que a outro, normalmente não vendo o nosso envolvimento e cumplicidade.
TL - Você fez um trabalho junto à polícia de Juazeiro. Que tipo de análise ou comparação você faz sobre as ações da PM?
Maita - Meu trabalho com a PM da Bahia, mais diretamente com o batalhão de Juazeiro foi por dois anos, 97 e 98, e fiz uma dissertação de mestrado defendida em 2000. Na época as PMs do Brasil estavam vivendo um tempo de abertura, não porque o quisessem, mas porque as suas referências anteriores não davam mais conta. Os policiais que chegavam não eram os velhos analfabetos arregimentados politicamente ou a laço, eram concursados, com ensino fundamental, com necessidades de consumo etc. Não vivíamos mais uma sociedade de apenas dois lados, os nossos e os deles, como na ditadura militar, por exemplo. A repressão não respondia ao gosto asséptico politicamente correto. Enfim, muitas coisas haviam mudado e a polícia precisava mudar também.
Em São Paulo, a condução da mudança da PM se deu pela via da saúde mental, ou melhor, das psicopatologias. Os policiais passaram a ser encaminhados para especialistas e os especialistas passaram a cunhar novos quadros patológicos para enquadrar o comportamento dos policiais. O problema lá se formulou como um problema do sujeito, do indivíduo. Aumentou muito o índice de suicídio de policiais nessa época assim como as denúncias da violência policial (Lembra-se do Rambo na favela Naval? Parece-me que foi o primeiro caso de um filme amador surpreender uma agressão de policiais numa abordagem).
Em Minas, a PM mais tradicional do Brasil deflagrou a primeira greve. O caráter missionário da ação policial foi desmanchado por reivindicações trabalhistas que repercutiram por todo o país. Ao contrário da nobreza da dedicação de um missionário, o que vimos foram as baixas condições de trabalho, de vida dos policiais. Esse movimento foi duramente reprimido, inclusive nos demais Estados.
Já na Bahia, o movimento de transformação da PM voltou-se mais para a própria instituição. Não querendo mais ser “pau-mandado”, braço de coronéis, a PM começa a buscar bases mais autônomas para si e particularmente bases científicas que justificassem e orientassem a ação policial. Foi aí que em Juazeiro a UNEB passou a oferecer um curso de Formação Humanística para os praças. Os oficiais participavam de cursos de sensibilização em uma ONG em Salvador. Na UFBA obtinham-se os subsídios para a qualidade total na administração da PM.
Muitos pensam que foi um curso para “humanização” da polícia. Não foi esse o propósito, era um curso que se valia das ciências humanas para pensarmos o policial nas dinâmicas da sociedade contemporânea. Por outro lado, a expectativa geral era de superarmos, com o curso, a violência policial.
Foi uma época muito rica em experiências, a tal ponto que posso dizer que contribuiu para a Universidade se abrir (e nós que nos sentíamos tão bacanas, tivemos que aprender muito). O desfecho dessa história foi o Policiamento Comunitário, o desenvolvimento de ações preventivas e articuladas com outras instituições, inspirado em experiências do Espírito Santo.
A meu ver, foi uma mudança para melhor, embora deixando de lado coisas melhores ainda que se anunciasse à época, tais como a desmilitarização da PM, e conseqüente a não hierarquização da ação policial, dando oportunidade para uma ação mais inventiva por parte dos policiais diante de cada problema; a revisão das atribuições dessa polícia, inclusive diante dos movimentos de reforma agrária, em que a polícia participaria como força para assegurar as negociações, o que implicaria no tratamento político desse tipo de questão. Lamentavelmente, não só por conta da PM, claro, isso não aconteceu. Posso dizer que nesse caso “a revolução foi a traição da insurreição”, mas deixou marcas importantes.
TL - O caso do vigilante Jean Carlos, onde policiais militares de Juazeiro estão sendo acusados de ter agredido e torturado fisicamente o rapaz porque suspeitavam que ele tinha roubado uma moto do policial José Milton Alves de Souza, deixou a sociedade local revoltada com a violência dentro das corporações. Como acreditar numa polícia que tem a tortura “institucionalizada”?
Maita - Pois é, como acreditamos que a violência policial deve ser a solução que precisamos para a segurança pública? E é com a nossa força que se fazem casos como esse descrito pela imprensa.
TL - O filme Tropa de Elite traz um debate da violência dentro dos quartéis, segurança pública inoperante e um ciclo de policiais corruptos instruindo novos adeptos a prática. A corrupção na polícia é um câncer que não tem cura?
Maita - O que considero mais importante nesse filme e livro não é a corrupção policial, se assim fosse não nos incomodaríamos tanto, já que estamos carecas de saber disso. O que se mostra nesses trabalhos, a meu ver, é o seguinte: “vocês não querem uma polícia preparada, treinada, armada, não-corrupta? Eis o BOPE! Uma polícia que se faz com um preço altíssimo: a destruição do policial que irá incorporá-la, a criação de um estado de guerra; a violência dos métodos etc. E aí, vão querer? É isso o que vocês querem?”
TL - A projeção do filme pode contribuir e estimular a formação de policiais sem escrúpulos?
Maita - O que está acontecendo é que a sociedade não está suportando se ver nessa história. Está muito arraigada a solução policial para os nossos problemas a tal ponto que tememos não saber mais o que fazer se perdermos esse nosso álibi. Engraçado é que apesar do filme ser baseado em fatos reais, num trabalho de um antropólogo e de dois policiais, muitos tratam como se o filme ou o livro estivessem propondo tudo aquilo! É exatamente o contrário! Se começam aparecer cópias reais do filme não foi o filme quem permitiu isso, as condições para se efetivar uma violência daquelas já estavam dadas. Insisto que o problema não é o filme.
Por que nunca mais as crianças se vestiram de azul e se lançaram de janelas para voar como o Superman? Não foi porque o super herói caiu de moda, mas porque também o papai-noel ficou de lado, não crêem mais que o dinheiro está lá no banco à disposição, a mãe não é de ferro nem infalível, o mundo de carne e osso se fez ver, não? Como então vencer a violência policial? Não adianta esperar o filme sair de cartaz, é preciso ver que práticas alimentam essa violência!
TL - Estamos formando uma nova sociedade doente? Com medo de não sair de casa, que não acredita nas instituições constituídas, nos políticos? Que sociedade está emergindo?
Maita - Muita violência acontece dentro de casa, cometida por nós mesmos. A Escola é violenta, os hospitais o são, as redações, os shoppings center, as livrarias, as farmácias, as damas de caridade, as igrejas, os políticos, os vizinhos, os sindicatos são violentos. A polícia também. Vivemos num mundo em que nos fazemos prisioneiros da dívida, da desigualdade, mesmo quando lutamos por melhores condições de vida. Nos desresponsabilizamos pelas ações de violência e esse é o nosso problema. Habituamos-nos a considerá-las um apêndice que pode ser extirpado. E não é assim. A violência vem com o que fazemos, nós a produzimos. Se queremos nos livrar dela, precisamos mudar nossas vidas.
Os maiores índices de violência estão nas cidades onde há maiores desproporções de renda entre a sua população. A maior parte dos crimes serve para suprir o luxo do consumo. Professores, por exemplo, intensificam seus trabalhos para poder ganhar mais e mais, claro que em prejuízo da qualidade do que fazem. Isso é crime. Do mesmo modo os médicos e muitos outros do bem. Por que você acha que uma consulta médica é tão cara? Porque temos que sustentar o luxo do consultório, da família, do status do doutor. Os criminosos assaltantes traficantes etc. e tal querem o mesmo. O crime deve compensar, senão não vale a pena. E a recompensa é financeira, é o aumento do poder de consumo. A pobreza, a fome não são as razões do crime e da violência, pelo contrário, sob essas condições, qualquer um fica anestesiado. O consumo sim é um motor diariamente acionado pela mídia, pelos ditos mais bem sucedidos, pela nossa cultura.
O narcotráfico, o futebol e as passarelas da moda oferecem um caminho suave para as riquezas de nossa civilização!... E a gente alimenta nos nossos corações sonhos de acessos fáceis às misérias do consumo, mas sempre nos sentindo atrás de onde deveríamos já ter chegado. A punição para os crimes cometidos em nome de um maior poder de consumo não nos tiram da corrida pelo ouro. A prisão, a FEBEM, o SPC, o Spa não nos devolvem a vida e sabemos disso. Não são com esses dispositivos que encontramos saídas para o que nos consome a vida.
Mas nem tudo é assim, nem sempre nós vivemos disso e daí é que as reais saídas vão aparecendo. Temos intervalos de tranqüilidade que se não são extensivos a todo o campo social, ao menos criam manchas, abrem caminhos. Que se fecham por forças maiores, mas que nos deixam marcas e podem fazer novos movimentos. Nós vivemos disso, é dessa saúde que nos nutrimos durante o tempo de escuridão. Aqui e ali surgem coisas boas, alegres, diria Spinoza.
Não são esperanças, pois ninguém vive de esperança. Mas são momentos reais, que duram em nós. Não são momentos de paz, pois nada têm a ver com uma oposição à guerra, surgem apesar da guerra, em meio a ela e assim atravessamos. Estamos sempre produzindo, às vezes um mundo melhor.
TL - O custo da violência no Brasil é estimado em 5,09% do Produto Interno Bruto (PIB) de acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e da Escola Nacional de Ciência Estatística (Ence) numa pesquisa publicada em junho/2007. Em sua opinião, os governos investem desordenadamente na área de segunraça pública?
Maita - É em vão querer extirpar a violência que conhecemos, mesmo nos valendo de uma violência muito maior. Recentemente a PM da Bahia destruiu mais de um milhão de pés de maconha que serviriam ao narcotráfico. Na mesma notícia os coronéis vitoriosos alertavam para o aumento da criminalidade em outros setores decorrente dessa operação. A meu ver não foi em vão a ação policial, apenas ela não resolve tudo. Os policiais costumam achar inútil apartar marido batendo em mulher, pois quase sempre a mulher retira a queixa, quase sempre a mesma coisa se repete dias depois. Mas é a tal história, ao separá-los, o policial cria um intervalo. Quem sabe outra coisa não se faz aí? Quem sabe ela o deixa, quem sabe ele a vê de outro jeito, quem sabe? Ninguém sabe. Do mesmo modo as ações sérias tendem a criar intervalos, tendem a quebrar o ritmo desencadeado pela violência criminosa. Ao buscar o corpo do filho, a mãe que se dirige ao policial do Bope, no filme Tropa de Elite, cria um embaraço para ele, que sabe quebrar a máquina em que se tornara.
Quanto aos valores eu não saberia avaliar, apenas lembrar o que Samuel Leite escreveu (um dos monitores do trabalho com a PM em Juazeiro e que foi barbaramente assassinado recentemente). Ele concluiu em uma de suas produções há dez anos: “a insegurança gera um mercado muito lucrativo”.
TL - A violência da polícia é um reflexo da nossa sociedade?
Maita - Bem, como disse, atribuímos super poderes à polícia e cobramos dela o fim dos nossos problemas com a criminalidade e violência em geral. Não estamos desse modo autorizando e até mesmo instigando tais procedimentos?
Além disso, a repressão está prevista como uma ação policial desde a formação do soldado. A sua competência para isso não advém de sua natureza, como antigamente. No início desse Batalhão de Juazeiro, por exemplo, os soldados eram arregimentados dentre os remeiros e de tantos outros do seu porte. Eram homens que se acreditavam fortes e capacitados para a luta pela sua própria natureza. Mas desde os tempos modernos o soldado é fabricado com métodos. Sua farda, seus músculos, o tom de sua voz, a precisão dos seus gestos automatizados, fazem parte de um treinamento sob o qual desaparecem suas fragilidades, ímpetos, intuição.
Por isso às vezes estranhamos que uma mesma pessoa possa ser de um jeito no dia-a-dia e tão rude no exercício policial. Como podemos ver no filme que citamos, não é a raiva de bandidos que molda o policial do Bope, mas a sua disciplina. Lá o policial personagem de Wagner Moura em missão numa favela, pelo celular ouvia enternecido os batimentos cardíacos de seu filho ainda no ventre da sua mulher que fazia uma ultrassonografia. A fabricação do soldado também aparece no filme nas avaliações que são feitas a propósito de dois aspirantes, como pedras brutas das quais se poderiam formar soldados com as características que se desejava.
O que extrapola a hierarquia policial militar (quando o soldado não age sob ordens), o que fere a disciplina (quando é movido pela raiva, por exemplo) é abuso do poder de polícia. A tortura policial pode ser um método ou abuso de poder. Aliás, a tortura como método não é específica dos militares, a polícia civil bem sabe disso.
Além da tortura, os policiais muitas vezes de modo a envolver toda a corporação tomam para si a missão delegada a eles de fazer frente à criminalidade. Criam verdadeiros campos de guerra em meio ao cotidiano das cidades. A gente vê muito isso no Rio e em São Paulo. Isso é assustador, pois não há controle. Não há ninguém que diga aos mocinhos e bandidos que não estamos em guerra. Até mesmo a imprensa se dissimula com medo, ao invés de mostrar a gravidade dessa condução e até mesmo o ridículo de um confronto dessa natureza. Pelo contrário, a imprensa começa a se fazer de boazinha para os bandidos com medo de perseguição. Muitos repórteres começam a fazer média com a periferia como se o lado dos bandidos fosse o dos favelados.
Na realidade, como em toda guerra, a população é vítima, se dá mal, não vive nada nem de heróico, nem de revolucionário nisso. As matérias jornalísticas não mostram os que não estão nem lá nem cá dessa trincheira, pelo contrário, tomam a PM x PCC, por exemplo, como sendo a extensão de toda a realidade. Espero que a polícia da Bahia não comece a sentir também o frisson desse tipo de coisa!...
Para um soldado escapar dessa formação é preciso muita habilidade. Lembro-me de uma dupla de soldados que sem atirar imobilizou um homem armado de escopeta no meio da população de um bairro de Juazeiro. Por que não atiraram? Um deles afirmou que algo lhe dizia que não atirasse. Quando foram conferir, a escopeta estava sem munição. Foi criticado pelos que seguiam a doutrina vigente: sacou a arma, atire. A lei os estaria cobrindo caso disparassem contra um homem armado, mesmo que sem munição. Disseram que não atirar era brincar de polícia. A dupla pensava diferente, agia com a intuição, temia mais a própria consciência do que as punições da lei. Essa dupla era o sinal de uma nova polícia possível, que não era resultante nem de uma natureza pronta para a luta, nem de uma máquina fabricada pela disciplina.
TL - Tem algo que você gostaria de dizer em especial...
Maita - Uma pergunta: como a imprensa pode noticiar a violência policial de modo a nos fazer pensar, a ver o problema em que estamos metidos? Talvez um blog traga essa potência de desmonopolizar a comunicação, não é?
* Maria Rita do Amaral Assy é psicóloga, professora da UNEB em Juazeiro, participou do programa de Formação Humanística do Policial Militar, um convênio entre a DCH III/UNEB e o 3ª BPM/J, que contou com a monitoria dos alunos de Pedagogia: Ivete Macedo, Regina Santana e Samuel Leite, mestre em Psicologia Clínica pelo núcleo de Estudos da Subjetividade Contemporânea da PUC/SP com a dissertação “Agitar, policiar, noticiar em maio de 98” disponível na Biblioteca do campus III, em Juazeiro/BA.